quarta-feira, 22 de maio de 2013


É a minha caixa de correio. Gostam? Eu também. É simples. Tão pintadinha, dessa cor que há, por todos os lados, em paredes frias. Sempre gostei de contrastes. Talvez por ser uma mulher de contrastes. Perguntem ao meu Arnaldo. Ele é que sabe dizer bem. Eu limito-me a abanar com a cabeça. Não lhe dou razão. Vai lá uma mulher admitir esses defeitos congénitos. Nem ao marido, quanto mais. Sou um poço de virtude. E que venha alguém e prove o contrário. Sim. O da frente (por ciúmes) andou a espalhar pela vizinhança que já me amassou. Sabem lá a chatice que me causou. Perguntem ao meu Arnaldo. Um dia, andava eu a deixar a minha entrada asseada, como qualquer boa esposa que se preze, e dei de caras com ela. Vinha toda arranjada – como se fosse Domingo de Páscoa (ele há mulheres que não se enxergam; nem com óculos). Vi a fulana passar por mim como se estivesse num cortejo (fúnebre). Boa tarde. Disse sem tirar o olhar dos meus afazeres. Boa tarde! (podia estar surda)
Já ao virar da esquina, a fulaninha abranda o passo, vira-se e (é mais forte do que ela): ó vizinha, quem foi que lhe fez o trabalhinho? Vai ter de perguntar ao meu Arnaldo. Piscou-me o olho. Se calhar julga que a tenho por mulher decente. Toda a gente sabe que aquela lambisgóia tem a casa por trabalho. Despejo o balde para a rua, torço o pano. E recolho ao lar. O meu Arnaldo está quase a chegar. Hoje vem mais cedo por causa dos horários. É um homem muito certinho, o meu Arnaldo. Oh. Lá vem ele.Conheço-lhe os passos – de há mais de vinte anos. Está bonita a nossa caixa. Diz-me à porta. Hás-de dizer à lambisgóia quem a pintou. E não te chateias, mulher? Ó homem, que mal tem isso? Lá o que ela faz pela vida não me diz respeito.
Comemos. Silêncio. Amamos. Silêncio. Dormimos. Silêncio.
Ó mulher (diz-me à saída), hás-de pedir ao teu marido que compre mais umas latinhas para pintar a parede. 

Sara Câmara Leme
Mapa Literário de Lisboa, Junho 2012

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