quarta-feira, 10 de agosto de 2011

João Carpinteiro acordou de um sonho que o deixou perturbado; purificou o espírito com frescura líquida, debruçado no lavatório, fez a barba e logo se sentiu preparado para mais uma jornada.
O fato – impecavelmente engomado – brilhava no cabide. João Carpinteiro assumia - com brio - a arte de bem vestir; seu avô sempre lho havia dito: se fores paquete, veste-te como se fosses escriturário; mas se fores escriturário – veste-te como se fosses um senhor doutor. Coisas destas – pensava - já não se ensinam. De frente para o espelho do guarda-fatos fez o nó da gravata, com perícia e zelo. Guardou o relógio no bolso do colete; ajeitou a correia e os botões de punho. Abriu o pequeno armário de parede do hall de entrada e escolheu um chapéu de coco castanho, com uma faixa acetinada que acentuava a sua compleição robusta. ora aqui está um rapaz composto! – dizia de si para si, cheio de orgulho.
Os colegas da repartição repontavam – decerto invejosos – quando o viam chegar, aperaltado; aqui e ali, iam soltando risinhos abafados. malandros! – pensava.
O chefe da repartição, que o conhecia há quase vinte anos, insistia em dizer que já não lhe fazia diferença: se ele está bem assim, porque hei-de eu andar a chatear-me com isso? desde que o trabalho fique feito.
O trabalho na repartição era – invariavelmente – o mesmo; mas João Carpinteiro não se incomodava – até gostava. Era cordial com os utentes - que fazia questão de cumprimentar; e tinha até muitos que mostravam preferência em serem atendidos por si – algo que o inchava de sobremaneira. E, diga-se – alto e bom som -, João Carpinteiro era dos melhores técnicos das finanças das redondezas; não se lhe conhecia uma única reclamação.
Ora o Guedes – noviço ao serviço –, que o parodiava - enquanto João Carpinteiro se ausentava para almoçar -, naquele dia não conseguiu resistir.
ó Guedes, tira-me isso daí. deixa o rapaz em paz, homem! – dizia o chefe meio indignado. porquê? – questionava o outro galhofeiro - o chefe vai ver: ele até me vai agradecer.
João Carpinteiro voltou do repasto, dirigiu-se aos lavabos para purificar a dentição e regressou ao posto. Encontrou, debaixo da mesa, um saco contendo uma caixa. Por fora conseguia ler-se: Sapataria Lisbonense | Rua da Assunção 53, Lisboa | Telefone: 213426712. Espreitou o conteúdo.
O Guedes, com um sorriso de escarninho de orelha a orelha, postou-se na secretária do colega: então, o que achas? João Carpinteiro, com a paciência que lhe era característica, disse: são bonitos. bonitos? são um verdadeiro espectáculo! e sabes que mais? são teus, que essa de andares descalço até mete dó! obrigada, Guedes; mas estou bem assim. hã?! - o outro franziu o sobrolho, desconcertado.
João Carpinteiro, com jeitinho (não fosse ofender mais o enxalmo), arredou o saco para o lado com o pé esquerdo. Nesse instante, pareceu-lhe mesmo ouvir a sábia voz do avô: se um homem tiver um coração de oiro lá precisa de sapatos para alguma coisa?

Sara Câmara Leme

5 comentários:

Zebedeu disse...

Queremos mais episódios.

Sara Câmara Leme disse...

Vou trabalhar para isso. Jokas

Sete Luas disse...

Fiquei curiosa... Aguardam-se cenas dos próximos capítulos :)

Anónimo disse...

Em que época se passa esta acção? De facto, parece-me ser de um tempo passado. Do tempo das pharmácias e dos alfaiates na Praça do Chile.

Sara Câmara Leme disse...

À Sete Luas: obrigada! prometo dedicar-me à produção de um novo capítulo.
Ao anónimo: ainda não sei bem a que tempo pertence. está em desenvolvimento! ;)